Introdução

As stablecoins evoluíram de experimentos tecnológicos de nicho para instrumentos de relevância crescente no ecossistema financeiro global. Em 2025, seu papel como infraestrutura de liquidação, veículo de transferência de valor e ponte entre mercados tradicionais e descentralizados atingiu um ponto de inflexão. O BIS Bulletin nº 108 analisa essa expansão, destacando riscos associados, respostas regulatórias e possíveis caminhos para uma integração segura em ambientes institucionais.

A importância deste boletim vai além de um retrato do momento atual. Ele estabelece uma estrutura de debate entre reguladores, bancos centrais e participantes institucionais, definindo parâmetros-chave para um setor que busca escala e legitimidade sem comprometer a estabilidade financeira.


A ascensão das stablecoins

De acordo com estimativas do BIS, o mercado de stablecoins superou US$ 170 bilhões em capitalização no primeiro semestre de 2025, representando uma fatia substancial do volume de transações tanto em aplicações DeFi quanto em corretoras centralizadas. Três forças se destacam:

  • Demanda por liquidação 24/7: as stablecoins oferecem transferência de valor contínua, previsível e entre jurisdições.
  • Integração com ativos tokenizados: títulos públicos, fundos do mercado monetário e depósitos tokenizados utilizam cada vez mais stablecoins como colateral líquido.
  • Clareza regulatória: legislações recentes, como o GENIUS Act nos Estados Unidos e o MiCA na União Europeia, forneceram uma base legal que reduz incertezas para emissores e usuários corporativos.

Ainda assim, o crescimento acelerado também evidenciou riscos sistêmicos: concentração em poucos emissores, opacidade das reservas, vulnerabilidades tecnológicas e o potencial para dinâmicas de corrida bancária digital.


Desafios de política pública

O boletim identifica três áreas principais de preocupação.

1. Integridade e governança das reservas

A credibilidade de uma stablecoin repousa sobre a qualidade e a transparência dos ativos que sustentam seu valor:

  • Auditorias independentes e padronizadas ainda são raras.
  • As reservas frequentemente incluem ativos com risco, criando um descompasso entre a estabilidade prometida e a real capacidade de resgate.
  • A forte concentração em títulos públicos de curto prazo vincula a estabilidade das stablecoins à dinâmica mais ampla do mercado monetário.

2. Risco de liquidez e estabilidade financeira

A velocidade e a escala dos resgates representam uma nova dimensão de risco sistêmico:

  • A perda de confiança pode desencadear corridas digitais instantâneas, diferentes das dinâmicas mais lentas de corridas bancárias tradicionais.
  • Resgates em massa podem se espalhar para os mercados de dívida soberana, afetando o financiamento de curto prazo.
  • Interconexões com fundos de investimento, corretoras e plataformas DeFi ampliam riscos de contágio.

3. Fragmentação regulatória

A inconsistência global complica a supervisão:

  • EUA e UE avançam em estruturas abrangentes, mas muitas economias emergentes permanecem em estágios exploratórios.
  • Esse cenário desigual incentiva a arbitragem regulatória.
  • Padrões de AML/CFT ainda são aplicados de forma desigual em redes baseadas em blockchain.

Caminhos para a integração institucional

Em vez de restringir a inovação, o BIS enfatiza a necessidade de moldar o desenvolvimento das stablecoins em alinhamento com objetivos de política pública.

Supervisão proporcional

  • Aplicar requisitos mínimos de capital, divulgação e auditoria de reservas.
  • Calibrar a supervisão com base na escala, distinguindo entre pequenos emissores fintech e conglomerados globais.

Transparência das reservas

  • Padronizar relatórios sobre a composição das reservas, idealmente com atualizações quase em tempo real.
  • Explorar a tokenização dos ativos de reserva, permitindo verificação on-chain do colateral.

Interoperabilidade com sistemas tradicionais

  • Desenvolver mecanismos automáticos de conversão entre depósitos bancários e stablecoins reguladas.
  • Promover conexões com infraestruturas RTGS e de pagamentos instantâneos.

Coordenação internacional

  • Aproveitar fóruns multilaterais (G20, FSB) para alinhar requisitos de supervisão.
  • Incentivar sandboxes transnacionais para testar interoperabilidade.

Implicações para instituições financeiras

Para bancos, gestoras de recursos e fundos de pensão, o relatório aponta várias considerações práticas:

  • Gestão de tesouraria: stablecoins reguladas podem servir como ferramentas eficientes de liquidação fora do horário operacional padrão, reduzindo custos de pré-financiamento entre moedas.
  • Produtos tokenizados: fundos de investimento e valores mobiliários podem adotar stablecoins como trilhos de pagamento padrão, aprimorando liquidez e eficiência operacional.
  • Compliance programável: smart contracts permitem verificações automatizadas de KYC/AML, incorporando conformidade regulatória diretamente nos processos de liquidação.
  • Risco reputacional: exposição a stablecoins não reguladas pode atrair escrutínio ou sanções, ressaltando a necessidade de due diligence rigorosa.

Panorama global

O BIS compara abordagens entre regiões:

  • Estados Unidos: o GENIUS Act introduz categorias de emissores (bancos, credit unions, entidades licenciadas) sob supervisão do OCC.
  • União Europeia: o MiCA estabelece requisitos para “e-money tokens” e “asset-referenced tokens”, com forte foco em reservas seguras e transparência.
  • Ásia: Singapura e Hong Kong estão entre os mais avançados, impondo regras estritas de reservas e auditorias independentes.
  • Mercados emergentes: muitas jurisdições avaliam se as stablecoins podem ampliar a inclusão financeira e reduzir custos de remessas.

Conclusão

O crescimento das stablecoins não é apenas um desenvolvimento tecnológico; marca uma transformação estrutural na forma como o valor é transferido e liquidado globalmente. Como destaca o BIS, a chave não é cercear a inovação, mas integrar as stablecoins ao perímetro regulatório de maneiras que salvaguardem a estabilidade e promovam a confiança.

Para as instituições, o boletim é um chamado à ação: avaliar riscos, atualizar frameworks de gestão de riscos e preparar-se para um futuro em que stablecoins reguladas podem se tornar centrais para as finanças globais.


Referência

Bank for International Settlements. (2025). Stablecoin growth: policy challenges and approaches. BIS Bulletin nº 108. Disponível aqui.

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