Em 10/nov/2025, o Banco Central publicou três normas que fecham o arcabouço da Lei 14.478/2022 (Marco Legal de Ativos Virtuais). Em conjunto, elas: (i) criam a figura regulada das Sociedades Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (SPSAV/PSAV), (ii) definem requisitos prudenciais/operacionais, e (iii) integram operações com ativos virtuais ao mercado de câmbio, com destaque para stablecoins. Todas entram em vigor em 2/fev/2026, com marcos adicionais ao longo de 2026 [1].

Escopo e alcance de cada resolução

BCB 519: Autorização e governança.

Disciplina os processos de autorização aplicáveis às PSAVs e instituições afins (p. ex., corretoras, distribuidoras e instituições de câmbio), com ênfase em requisitos de idoneidade, capacidade econômico-financeira e governança. É o trilho formal para entrada, reorganização societária e eventos sujeitos a aval prévio do BC. Vigência a partir de 2/fev/2026 [2].

BCB 520: Constituição, funcionamento e requisitos prudenciais.

Define quem é e como opera uma PSAV (modalidades “intermediária”, “custodiante” e “corretora”), exigindo sede/gestão no Brasil, segregação patrimonial, trilhas de PLD/FT, cibersegurança, controles internos e políticas proporcionais ao risco e porte. Estabelece a necessidade de autorização para iniciar a atividade e regras de transição para quem já atua, incluindo prazo e hipóteses de cessação se o protocolo não ocorrer tempestivamente [3].

BCB 521: Câmbio e capitais internacionais com cripto.

Altera a Res. BCB 277/2022 para incluir operações com ativos virtuais no mercado de câmbio e capitais internacionais: pagamentos e transferências internacionais usando AV, usos vinculados a meios de pagamento no exterior, transferência envolvendo carteiras de autocustódia com identificação do titular, e operações com ativos referenciados em moeda fiduciária (stablecoins). Cria obrigações de reporte detalhado (Anexo II-A) e regras de limites por operação, com vigência escalonada a partir de 2/fev/2026** e 4/mai/2026 [4].


Prazos e fase de transição

O conjunto entra em vigor em 2/fev/2026. A Res. 521 traz módulos cambiais com início em 4/mai/2026 (ex.: novos artigos e Anexo II-A de reporte). Para quem já opera como PSAV de fato, a 520 prevê regra de transição: protocolado o pedido no prazo, a operação pode seguir até decisão; sem protocolo tempestivo, a prestação deve cessar em até 30 dias após o fim do prazo. Essas janelas são críticas para planejamento de risco, jurídico e tecnologia [3].


O que muda para o mercado

O marco reduz a zona cinzenta e aproxima o segmento de um regime prudencial bancável, com segregação de recursos, governança e políticas auditáveis, mitigando riscos de “commingling” e falhas sistêmicas. Para stablecoins, a 521 organiza a interface com o câmbio, exigindo KYC/KYB das partes e identificação de carteiras próprias e deslocando a liquidação cripto para dentro de trilhas cambiais formais, ponto que, ao mesmo tempo em que habilita fluxos legítimos, impõe disciplina de registro e reporte [4].

Dois pontos operacionais merecem atenção executiva. Primeiro, a proibição de compra e venda de AV com pagamento ou recebimento em moeda estrangeira (novo art. 76-A, §2º da Res. 277), o que obriga o desenho de estruturas compatíveis com a conversão formal no SCE. Segundo, os limites por operação quando a contraparte não é autorizada: US$ 100 mil para PSAV e US$ 500 mil para instituições autorizadas a operar em câmbio, limites que endereçam risco, mas exigem estratégia de contrapartes autorizadas para tickets maiores [4].

Há ainda um descompasso natural entre o ambiente 24/7 on-chain e o horário do Sistema Câmbio para registro formal (Res. 277, art. 78). Liquidações podem ocorrer a qualquer hora, mas o registro/reportes precisam obedecer à janela do SCE, o que requer rotinas de reconciliação, position-keeping e cut-offs internos [5].


Orientação prática para instituições

Licenciamento e organização societária.

Instituições que pretendem intermediar, custodiar ou listar AVs devem avaliar o licenciamento como PSAV nos termos da 520/519, com sede/gestão no Brasil, políticas e controles proporcionais ao risco. Instituições financeiras e de pagamento já autorizadas podem operar diretamente naquilo que a regulação admite, observando as mesmas salvaguardas prudenciais (segregação, PLD/FT, cibersegurança) e eventuais arranjos de “Banking as a Service”. Planejar governança, papéis e responsabilidades e auditorias desde o dia zero acelera a análise regulatória [3].

Fluxos com stablecoins e câmbio.

Para pagamentos e transferências internacionais com AV, a Res. 521 exige identificação do titular quando houver carteiras próprias, trilhas de origem/destino e reporte granular (Anexo II-A). A compra/venda de AV com pagamento ou recebimento em moeda estrangeira é vedada; e, se a contraparte não for autorizada, valem limites por operação (US$ 100 mil/US$ 500 mil). Em termos de processo, recomenda-se: (i) mapear contrapartes autorizadas nos dois lados; (ii) adequar contratos e políticas para a identificação de carteiras e compartilhamento de dados; (iii) instituir rotina de reconciliação 24/7 → SCE para mitigar o “timing gap” [4].

Transição e continuidade operacional.

Quem já atua deve protocolar o pedido no prazo indicado na 520 para manter a operação até decisão. A norma prevê a cessação em 30 dias após o fim do prazo se o protocolo não ocorrer. Desde já, é prudente preparar o dossiê de autorização (capital, governança, trilhas de controles, contratos de outsourcing relevantes e segurança cibernética), mitigando riscos de gargalo próximo à vigência [3].


Oportunidade de mercado: o corredor regulado entre DeFi e TradFi

O novo marco não proíbe o DeFi institucional; ele canaliza o uso de tecnologia e liquidez on-chain para um corredor regulado que combina licenças, registro cambial e auditoria de trilhas. Nesse corredor, pagamentos internacionais com AV/stablecoins tornam-se registráveis e rastreáveis, com KYC/KYB e identificação de carteiras próprias, permitindo que tesourarias corporativas e bancos reduzam prazos de liquidação e ganhem previsibilidade de compliance [1].

Ao mesmo tempo, a inclusão de AV em capitais internacionais, como investimento estrangeiro direto e crédito externo, inclusive integralização de capital e pagamento de obrigações em AV, aproxima a tokenização de operações de M&A, venture e dívida cross-border com registro formal no SCE. Para tickets elevados, a estratégia vencedora tende a ser a orquestração de contrapartes autorizadas nas duas pontas, reduzindo a fricção de limites e viabilizando formação de mercado institucional em ativos referenciados em moeda [4].

Finalmente, a exigência de segregação patrimonial, controles de custódia e auditorias cria o alicerce para custódia institucional de AV interoperável com políticas programáveis de conformidade (listas, Travel Rule local, limites por perfil), destravando a adoção por comitês de risco. Em paralelo, a realidade de liquidação 24/7 frente ao registro em horário do Sistema Câmbio exige engenharia operacional (position-keeping, reconciliação e cut-offs), mas não elimina os ganhos de eficiência e a possibilidade de liquidação atômica em ambientes permissionados, desde que as pontes PSAV/IF estejam adequadamente licenciadas e integradas ao SCE [5].


Conclusão

As Resoluções 519, 520 e 521 inauguram uma fase em que ativos virtuais passam a operar sob salvaguardas prudenciais comparáveis às do sistema financeiro, com integração explícita ao câmbio e estatísticas oficiais. Para as instituições, o recado é claro: licenciar, padronizar controles e operar por dentro do SCE. Para o mercado, a mensagem é estratégica: há um corredor regulado pronto para liquidez programável, pagamentos cross-border e capitais internacionais com previsibilidade jurídica, desde que processos, tecnologia e governança sejam construídos com proporcionalidade e auditabilidade desde o início.


Referências

[1] https://bcb.gov.br/detalhenoticia/20918/nota"Banco Central regulamenta o uso de ativos virtuais e o funcionamento e a autorização das instituições que atuam nesse mercado"
[2] https://bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolução BCB&numero=519"Resolução BCB n° 519 de 10/11/2025"
[3] https://bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolução BCB&numero=520"Resolução BCB n° 520 de 10/11/2025"
[4] https://bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolução BCB&numero=521"Resolução BCB n° 521 de 10/11/2025"
[5] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?numero=277&tipo=Resolução BCB"Resolução BCB n° 277 de 31/12/2022"

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